segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Conversa com... Hugo Miguel


“Só nos dão valor quando dão pela nossa falta e percebem que sem árbitro não pode haver jogo”

Hugo Miguel, é árbitro profissional de futebol há 15 anos e foi promovido à primeira categoria na época 2006/2007. Soma um total de 29 jogos na Liga e 46 na II Liga. Convive em harmonia com a crítica e consegue separar a crítica construtiva daquela que é alicerçada em opiniões de fanáticos por clubes ou regionalismos bacocos.

1. Como começou a sua ligação ao mundo da arbitragem?
Hugo Miguel– Costumo dizer que já nasci árbitro, desde que me conheço que estou ligado à arbitragem por influência do meu pai (entretanto falecido em 1997) que foi árbitro na 3.ª Divisão e assistente na 1.ª. Desde pequeno sempre o acompanhei nos treinos, nos jogos, nos núcleos, pelo que este tipo de ambiente nunca me foi desconhecido.

2. Foi uma decisão fácil de tomar?
Hugo Miguel – Pode parecer fácil, mas não foi. Fiz uma carreira como guarda-redes de futsal, tendo jogado num dos grandes da capital, chegando a ser Campeão Nacional em 1994/95. Na transição para sénior fui dispensado e introduziram a lei da clara probabilidade de golo. Acabei por ser expulso quatro vezes nessa época e como passei muito tempo castigado, optei por ir tirar o curso de árbitro, muito por influência de alguns colegas do meu pai.

3. Como classifica a sua promoção à primeira categoria?
Hugo Miguel – Após quatro épocas na 2.ª Divisão sempre com classificações em crescendo (23.º, 9.º e 7.º) no quarto ano a minha aposta era clara para atingir o primeiro escalão. Felizmente as coisas correram bem e acabei por ficar no 3.º posto.

4. Até chegar a esse patamar quais foram as maiores adversidades com que se deparou?
Hugo Miguel – Na arbitragem as maiores dificuldades passam-se no início da carreira. Há falta de apoio e de enquadramento a nível material, logístico e fiscal. Por isso assim que surgem as primeiras dificuldades ou um jogo menos bom, muitos jovens árbitros abandonam por ainda não se sentirem suficientemente comprometidos com a actividade.

5. Agora que já cimentou a sua posição a nível nacional, ate onde pretende chegar?
Hugo Miguel – Vou começar a 5.ª época na Liga com classificações entre o 13.º e o 16.º lugar nestes quatro anos, tendo sido notória a regularidade. Acredito que com o acumular de alguma experiência consiga alcançar posições de maior destaque.

6. Alcançar o estatuto internacional, um objectivo em mente?
Hugo Miguel – Neste momento é um sonho que nunca se poderá tornar em obsessão. Enquanto a nível regulamentar a idade me permitir vou perseguir esse objectivo, sem nunca desviar o foco da tarefa arbitrar.

7. Quais os melhores momentos da sua carreira?
Hugo Miguel – Há momentos que marcam a carreira de um árbitro. A estreia em qualquer escalão após uma promoção fica sempre registada na nossa memória. Já tive participações em Torneios Internacionais em Espanha, França e Inglaterra. Conto no currículo com duas presenças nas meias-finais da Taça de Portugal, nas últimas duas temporadas.

8. Você já deve ter passado por diversas situações engraçadas e inusitadas. Cite algumas.
Hugo Miguel – Guardo uma com especial carinho. Num jogo da 3.ª Divisão disputado em Portalegre a dada altura choquei com um jogador e perdi o apito. Entretanto os jogadores seguiram a jogada e eu fui no seu encalço. O jogo só parou após uma infracção assinalada pelo meu assistente que além da bandeira usou o apito dele. Lembro-me dos jogadores terem comentado que nunca tinham visto um assistente a apitar. Desde esse dia tenho sempre um apito suplente.

9. Portugal reconhece-lhe valor?
Hugo Miguel – Sentimo-nos reconhecidos quando integramos equipas de arbitragem portuguesas nas Competições Europeias. Em Portugal, fora de Instituições como a Liga e FPF, por vezes trata-se a arbitragem como um parente pobre do futebol, quando somos essenciais para o desenvolvimento da modalidade.

10. Como vê o estado da arbitragem em Portugal? É um espelho da crise que o país atravessa?
Hugo Miguel – Acho que a presença brilhante do Olegário Benquerença no último Mundial ajuda a perceber o valor da arbitragem portuguesa. Aliás a arbitragem conta com mais presenças nestes certames do que a própria Selecção Nacional, por isso não se pode dizer que a arbitragem está em crise.

11. É uma arbitragem no seu ponto de vista com qualidade?
Hugo Miguel – O exemplo do Olegário será a face mais visível, mas todos os nossos Internacionais são chamados pela UEFA e pela FIFA para participar nos seus jogos, há agora um grupo de novos valores que depois de adquirir alguma maturidade e experiência, poderão desenhar carreiras interessantes, pelo que estou convicto de estarmos no caminho certo.

12. Há alguma aresta a ser limada?
Hugo Miguel – Talvez a nível da captação de mais e melhores árbitros. Como sabe, há falta de árbitros em Portugal, pelo que um maior aproveitamento de jovens com potencial poderia trazer benefícios. Maior quantidade implicaria neste caso melhor qualidade.

13. Mantém boa relação com a imprensa?
Hugo Miguel – Sim, penso que convivo bem com a crítica. Consigo separar a crítica construtiva daquela que é alicerçada em opiniões de fanáticos por clubes ou regionalismos bacocos. Tento sempre aproveitar algo para melhorar, nem que seja numa perspectiva ou abordagem diferente.

14. A imprensa é a maior adversária dos árbitros em Portugal?
Hugo Miguel - Talvez a televisão seja a maior adversária. Contra factos não há argumentos, é uma luta desigual dos árbitros contra as câmaras. Estamos próximos do limiar máximo de aproveitamento, mas haverá sempre outro ângulo a captar uma imagem diferente da que nós vimos. Depois os erros são escalpelizados em programas que não trazem valor acrescentado ao futebol.

15. Todo o árbitro devia seguir a velha máxima “quem não deve não teme”?
Hugo Miguel – A integridade tem de ser um factor moral intrínseco ao próprio árbitro. O árbitro que se deixar condicionar não terá as melhores condições para desempenhar a sua função. A neutralidade e equidistância deverão estar sempre presentes. A linha que delimita determinadas posturas da arrogância, por vezes pode parecer muito ténue, há que ter algum cuidado.

16. No fim de um jogo, o árbitro certamente faz um apanhado de tudo que se passou. Quando detecta que errou mesmo. O que faz e o que sente?
Hugo Miguel – A sensação de errar é das piores que se pode ter. Sentimos que inadvertidamente podemos ter influenciado um jogo, uma prova, a carreira de um jogador ou de um treinador. No fim do jogo fazemos um “flash-back” do que aconteceu, além de termos a possibilidade de ver os vídeos dos jogos numa perspectiva crítica e de melhoria. Em certos jogos acontece aquilo que nós chamamos “segunda vaga dos protestos”. Após um lance acontecem os protestos normais. Depois e nos casos dos jogos televisionados vem uma segunda vaga de assobios, quando alguém duma rádio ou da televisão emitiu uma opinião diferente da nossa. Aqui temos de fazer um grande esforço para não nos deixarmos afectar, até porque a razão pode ainda estar do nosso lado.

17. Na sua actuação o árbitro também tem receios ou abstrai-se deles dentro das quatro linhas?
Hugo Miguel – Amigos e familiares que foram a muitos jogos nos escalões mais baixos, ficavam impressionados quando lhes confessava que não os tinha visto no recinto, tal a focalização que impunha na tarefa. Por isso, posso ter passado situações em que não tive consciência do perigo para a integridade física, mas a parte mental tem de ser mais forte para sobrepor-se a todas essas situações.

18. A arbitragem já lhe trouxe inimigos?
Hugo Miguel – Há muitos anos, ainda no Distrital, um jogador disse que me matava após a exibição do cartão vermelho. Na época seguinte tornei a arbitrá-lo e no fim do jogo perguntei-lhe se ainda tinha o mesmo tipo de sentimentos. Ele disse que não, que era futebol, que já lhe tinha passado. Serve para exemplificar que os desabafos ou o que se diz a quente não tem a ver com a realidade. Mais do que tudo, o que guardo são as boas relações e as amizades que espero que venham a perdurar no futuro, sobretudo com os meus colegas de actividade.

19. Os árbitros são o elo mais fraco da cadeia futebolística?
Hugo Miguel – Há quem queira ver as coisas por esse prisma, só nos dão valor quando dão pela nossa falta e percebem que sem árbitro não pode haver jogo. Hoje em dia com a evolução natural dos tempos e da sociedade, já se percebeu que os árbitros são seres pensantes e devem encarados como parceiros.

20. Qual a regra mais difícil de aplicar na hora do jogo?
Hugo Miguel – Objectivamente a lei de mais difícil aplicação é a do fora-de-jogo. O trabalho dos árbitros assistentes é complicadíssimo na análise da posição, momento do passe, movimento da bola e dos jogadores, interferência ou influência na acção dos adversários. Para os árbitros ficam as outras leis, sua interpretação, aplicação e gestão emocional. Aqui entra em campo a regra do bom senso, procurando ser sempre consistente na aplicação dos critérios.

21. Decidiu ser árbitro de futebol. Voltando atrás, voltaria a tomar essa decisão?
Hugo Miguel – É óbvio que sim. Não me arrependo um segundo que seja. Se tivesse seguido a carreira de jogador de futsal estaria nesta altura a terminar, como estão os companheiros da minha geração. Na arbitragem em condições normais tenho mais 13 anos pela frente, a pisar os melhores palcos, inserido num fenómeno que adoro, que me faz vibrar. Espero aproveitar cada jogo e cada momento para desfrutar e compensar a ausência da minha família, essa sim a principal sacrificada com esta actividade. Eles sofrem muito por mim.




09.08.2010

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